Visando a participação, pela terceira vez, no “Concurso Nacional de Jornais Escolares do Público”, cujo tema é “O que é uma República?”, o “Clube de Jornalismo”, propôs-se este ano fazer deste tema o pano de fundo dos números 32 e 33 da revista “Com Pias e Cabeça”.
Neste sentido, procuramos, ao longo destes números, discutir, esclarecer, perspectivar e aprofundar a República e os seus ideais numa direcção que fugisse de lugares comuns e que trouxesse qualquer coisa de novo e, sobretudo, que permitisse o reencontro com os valores que a enformam. Nesta linha de orientação, vasculhamos o passado, observamos criticamente o presente e perspectivamos o futuro.
Destacamos aqui a entrevista que fizemos ao senhor Alberto Guimarães (que vive em Lousada), bisneto do terceiro presidente da Primeira República Portuguesa, Bernardino Machado, pela pertinência e interesse da mesma – entrevista da qual foi feita uma pré-publicação na revista do “Público na escola”, a convite do director pedagógico do Público, Eduardo Madureira.
Sublinhamos ainda que estes dois números da “Com pias e cabeça”, dedicados à República, se entrelaçam com o facto deste ser o “Ano da luta contra a pobreza e a exclusão social”, pelo modo como o ideário republicano se entrança nesta luta, na busca ardente de uma sociedade mais justa, mais fraterna, mais próxima da perfeição.
Conceição Brandão(Directora da “Com Pias e Cabeça”)
Bernardino Machado (1851 – 1944)
“Duas forças dominam o mundo, maiores que todas as outras, a liberdade, que é a maior força singular, e a sociabilidade, que é a maior força colectiva. Harmonizá-las, eis o problema. Unidas dão prosperidade e grandeza das nações e da humanidade, separadas, em conflito, a sua decadência e ruína.”
Bernardino Machado
Bernardino Machado abre com estas palavras um opúsculo, publicado em 1901.
É com elas que abrimos também este artigo sobre o terceiro presidente da Primeira República Portuguesa, já que elas traduzem as linhas de força que pautaram a vida deste homem singular, cuja divisa era, citando-o, “Não se pode ser um bom pai de família e mau político; nem se pode ser bom político e mau pai de família”. Assim se infere que, para ele, as dimensões humanas do privado e do público eram indissociáveis da mesma ética.
Bernardino Machado mostra, assim, um matiz profundamente humanista nas suas palavras e ainda, como comprovaremos mais adiante, um compromisso profundo com a cultura, sendo, por isso, uma figura primordial na promoção da cultura e da língua portuguesas no estrangeiro. Homem viajado, Bernardino bebe, no contacto com outros países, quer como Ministro dos Negócios Estrangeiros, quer como Embaixador de Portugal no Brasil, o pensamento mais avançado e o espírito positivista que então se afirmava. O contacto com os grandes intelectuais do seu tempo e a sede de conhecimento tornaram-no um homem muito à frente do seu tempo.
Compreende-se assim que Bernardino assuma um papel de relevo na democratização do Ensino Público nacional, empreendendo medidas no sentido de desfazer o afastamento entre a publicação das reformas educativas e a sua efectiva implementação. Estas medidas visaram a reestruturação do Ensino Público, defendendo a reorganização do Conselho Superior de Instrução Pública e o restabelecimento do Ministério de Instrução.
Ao debater o problema da criação dos “Liceus para Mulher; a igualdade de oportunidades no acesso a todos os graus do Ensino Público e a modernização do Ensino Profissional (projecto formativo de inspiração europeia), Bernardino revela ser um estadista revolucionário, apresentando uma capacidade de visão e uma coerência absoluta com os grandes ideais republicanos – respondendo à urgência de alfabetização dos cidadãos (em 1900 havia 78,6% de analfabetos em Portugal), das mulheres e dos operários em particular, – que nesse passado eram já o nosso futuro.
Dados biográficos de Bernardino Machado
Bernardino Machado é Presidente da República de 6 de Agosto de 1915 a 5 de Dezembro de 1917 (Primeiro mandato) e de 11 de Dezembro de 1925 até 28 de Maio de 1926 (Segundo mandato).
Entre os dois mandatos, foi-lhe imposto o exílio, quando Sidónio Pais se faz eleger Presidente da República à revelia da Constituição de 1911. Esteve exilado no Brasil, para onde parte com a família durante dois anos, sendo o Brasil, de resto, o seu país natal.
Bernardino Nasceu no Rio de Janeiro, sendo filho de pai português, António Luís Machado Guimarães e de mãe brasileira, Praxedes de Sousa Ribeiro Guimarães. A família regressa a Portugal em 1860 e vai viver para o concelho de Vila Nova de Famalicão, Joane.
Ao atingir a maioridade, Bernardino opta pela nacionalidade portuguesa. Casou com Elzira Dantas com quem teve dezoito filhos.
É precisamente com um descendente de Bernardino Machado, um seu bisneto, Alberto Guimarães, que fomos falar, quando soubemos que ele vive em Lousada, sendo sua filha aluna da nossa escola.
Com ele, descobrimos que há histórias na História que, às vezes, não cabem dentro desta, mas que nos levam ao encontro do homem, do cidadão e nos permitem compreender melhor o estadista. Uma e outra faceta são, no caso de Bernardino Machado, absolutamente indissociáveis.
Alberto Guimarães trabalha em publicidade e diz-se técnico de audiovisuais. Está neste momento a trabalhar num documentário sobre Portugal e o Brasil, mais especificamente sobre Adelino Moreira, que emigra para o Brasil e lá faz carreira nos meios musicais, começando a ser campeão de vendas nos anos 50. O referido documentário de que ele é autor da ideia e produtor terá a chancela da RTP2.
“Neste documentário, acabo por fazer um flashback ao tempo do meu bisavô” – confessa-nos Alberto Guimarães, já que o documentário se reporta ao tempo em que o bisavô esteve exilado no Brasil.
Com pias e cabeça: Bernardino Machado é caracterizado como bonito, aprumado, ambicioso num artigo que li – reconhece-lhe esta caracterização na imagem que guarda dele?
Alberto Guimarães: Sim, é verdade que a imagem que guardo dele é de um homem vaidoso, sempre muito esmerado com o vestuário – não porque tivesse convivido com ele, mas porque sendo ele uma referência dentro da família, acaba por ser uma figura sempre presente; ele é, de certo modo, o patriarca da família. Embora não sejamos ufanos em relação a ele, formamos uma espécie de clã, pela estima com que é recordado, pelas histórias que dele ficaram e que vão passando de geração em geração.
Há uma muito interessante que se conta entre a família, de que, quando em 1917 é deposto por Sidónio Pais, ele se recusa a abandonar o anexo do palácio de Belém onde vivia com a família, pagando então uma renda. Tendo Sidónio enviado um emissário para que ele saísse, sua bisavó respondeu, mandando dizer que não saíam, porque já tinham pago a renda.
Na numerosa família, há sempre uma forte ligação a ele; há sempre um Bernardino – o meu pai tem esse nome.
Apesar dessa imagem de aprumo, ele era uma pessoa desapegada materialmente, tendo aliás perdido toda a sua fortuna na política. Note-se que, quer ele, quer a minha bisavó, eram provenientes de famílias muito ricas, sendo ambos detentores de uma fortuna considerável. “A política fez-se para se perder” – dizia Bernardino, citado por Vasco da Gama Fernandes num artigo de 1985 intitulado “Morrer pobre”. Acrescenta ainda o autor desse artigo: “Não há dúvida que Bernardino Machado tinha razão. A política não é uma profissão prosélita. Tudo conduz à vida penosa de mulheres de famílias cujos chefes nunca ganharam nada com a política, arrastando dentro do país e fora dele as condenações à morte civil e as condenações à morte lenta dos que nada tinham de seu.”
C.p e c.: A sua bisavó, com quem ele teve 18 filhos, aparece na sua biografia como uma grande colaboradora na vida do estadista. Chamou-me particular atenção o facto dela ter escrito um livro de contos para os netos…
A.G.: Havia um exemplar desse livro lá em casa. Nunca o li. Ela era filha de emigrantes brasileiros. Ambos formavam um casal, que poderemos dizer muito moderno, ou, se quisermos, rebelde para o seu tempo, já que dividiam tarefas em casa no que diz respeito à educação dos seus 18 filhos. Note-se que, se ainda hoje muitos homens se demitem da educação dos filhos, naquela altura tal era bem mais visível. O meu bisavô nunca se demitiu dessa tarefa, o que até se pode comprovar pelo livro que escreveu – um livro de observação do crescimento dos filhos.
Posso dizer que há uma identidade intelectual entre os dois. Ela ía até onde a deixavam ir na altura, sendo também uma mulher um pouco fora do seu tempo, mostrando uma natural apetência para o crescimento intelectual.
Pode dizer-se que ele é o primeiro homem feminista em Portugal – tinha uma visão muito forte das pessoas – é ele quem está por detrás dos primeiros liceus femininos no nosso país. A sua formação e vocação humanista, bem como o convívio em Coimbra com a geração de 70, permitiram-lhe a aliança da sensibilidade ao espírito positivista, imprimindo na sua personalidade uma atitude revolucionária, típica de alguém que apanha com todos os ecos do século XIX, um século onde fervilhavam ideias novas assentes na crença na ciência e no homem. A influência do Brasil na sua formação também terá sido determinante na definição do seu carácter disponível para a abertura a novas ideias.
C.p e c.: Bernardino Machado parece ter sido um homem de interesses diversificados, efectivamente, visto que cursou áreas tão diferentes, como Matemática e Filosofia, tendo sido professor e estadista.
A.G.: Curiosamente, ele acaba por ser o fundador da cadeira de Antropologia, paleontologia Humana e Arqueologia Pré Histórica. Penso que havia nele uma necessidade de reflexão sobre a essência do Homem; uma urgência de se questionar, de procurar; uma sede de saber mais sobre esse eu que nos habita.
Ele é uma figura diferente na sociedade portuguesa de então – acentuava-se nele o espírito de cidadania, o prazer de viver, a afabilidade (conhecido por tirar o chapéu a toda agente que o cumprimentava), a promoção dos valores da dignidade humana, o gosto pela ciência e pela natureza – foi ele quem criou um Museu da História Natural na Universidade de Coimbra (1885), onde estudou, tendo-se doutorado com apenas vinte e oito anos nas duas especialidades que cursou, Matemática e Filosofia.
Era, de facto, um homem de interesses diversificados, o que é visível até no modo como torna indissociável política e família. Era um homem muito arreigado à família e um estadista comprometido com as grandes reformas que se vieram a fazer no ensino, no sentido da sua democratização.
C.p e c.: Pelo que li, Bernardino teve um papel importante no reconhecimento da nova República por parte dos países estrangeiros.
A.G.: O desempenho de cargos públicos, tais como o de Ministro dos negócios Estrangeiros e Embaixador de Portugal no Brasil, permitiu-lhe absorver o pensamento democrático da época. Lembre-se que o Brasil era já então uma república. O intercâmbio com instituições políticas e culturais diversas ajudou-o a construir um espírito cosmopolita, portanto mais aberto e disponível para a absorção de ideias novas. Fez várias viagens nessa altura, no sentido de consolidar e credibilizar a nossa, então, jovem República.
C.p e c.: O período em que Bernardino Machado foi Presidente da República foi de grande agitação social – um período de desafios, o desafio de consolidar os valores dessa “jovem República”. E hoje, que desafios pensa que a nossa República de cem anos experimenta?
A.G.: A Implantação da República nunca foi comemorada em Portugal desta forma e isto tem um saldo positivo, pois é uma oportunidade das pessoas reflectirem sobre o papel do Presidente da República e sobre as figuras que fizeram parte dela e que foram um pouco esquecidas, bem como sobre o espírito republicano, cujos ideais enformam aquilo que somos como pátria.
Penso que o grande desafio hoje será o de continuar o trabalho que foi feito pelos velhos republicanos. Há gente ali de têmpera, que tem um percurso de vida muito interessante, que abdicou de vidas estabilizadas. Esse mesmo aspecto é referido no artigo de que já falei (“Morrer pobre”) – lá se lê: “Bernardino Machado, Afonso Costa (…)”, mais tarde, outros ainda como Jaime Cortesão, António Sérgio, Mário de Azevedo Gomes e Raul Proença legaram simplesmente os bens espirituais da sua obra. O dinheiro, a pecúnia, o enriquecimento nunca fizeram parte do seu dicionário de civismo.”
O grande orgulho que tenho no meu bisavô é do facto de ele ter abdicado de uma carreira universitária, que poderia ter feito, ou de uma carreira diplomática que deixou passar ao lado para se entregar de forma tão altruísta à política, abraçando o papel de estadista como se de uma missão se tratasse. Ele tinha fortuna pessoal, a qual perdeu durante os anos em que esteve exilado. Abdicou, portanto de uma vida de facilidades. De notar que Salazar lhe retirou a reforma de professor universitário. Penso que não houve nada, no fim, a pagar sacrifícios de uma vida inteira.
C.p e c.: “estórias dentro da História” considera ser um título ajustado a esta entrevista?
A.G.: “estórias dentro da História” é um bom título, pois o percurso do meu bisavô tem muito disso. É interessante ver nele particularidades, como o facto da “rede de faróis” ter sido criada por ele enquanto Presidente da República, bem como a sua incursão pelo ensino, sendo protagonista do “Liceu para mulher” e ainda a sua profunda curiosidade na observação do crescimento da sua numerosa prole, levando-o a escrever o livro “Notas de um pai”. Sendo ele um homem vincadamente de família, e tendo uma tão numerosa, fez perdurar nela muitas memórias e lendas associadas a si.
A sua agilidade ao mover-se entre áreas tão diversas, representa a sua capacidade de agir, transformar, fazer, as quais, associadas a uma sede intelectual muito grande, nos fazem o retrato de um homem da História e rico em “estórias”.
Conceição Brandão
“Com Pias e Cabeça”, num. 32, Abril 2010
A República: do corpo à instituição
Nós, seres humanos, somos dotados de um poderoso cérebro, associado à nossa faculdade racional, possuímos um incansável coração que assegura o dinamismo de todo o organismo e um complexo sistema imunitário que garante a nossa segurança. Contudo, todo este sistema, por vezes, sofre oscilações no decorrer do seu natural bom funcionamento: o cérebro cessa a sua actividade, provocando a instabilidade geral do organismo, o sistema imunitário, descontrolado, ataca o próprio ser que o encerra e o coração abranda, acabando por terminar a sua longa e difícil caminhada. O mesmo pode acorrer no seio de um regime republicano: a direcção política caminha para uma insolvência, a economia, motor de toda a nação, regride de forma abrupta face às crescentes pressões do povo sobre o governo e é no exército, talvez por uma propensão histórica, que depositámos toda a esperança, exército este que acaba por constituir uma ameaça à integridade da nação.
Talvez a profunda negatividade que assombra o panorama político mundial se deva ao facto de depositarmos demasiadas esperanças, desejos e convicções num sistema criado pelo Homem, composto pelo Homem e mesmo eleito por si. O erro é algo intrínseco à nossa própria natureza e, como tal, a todas as nossas criações, pelo que não podemos exigir de um mero regime a perfeição se nós mesmos não a podemos alcançar. A República é, pois, um regime imperfeito que integra a nossa imperfeição. A solução não passa por inviabilizar o que nos rege, aquilo que organiza a sociedade, mesmo que se trate de um sistema falível. O que mais temo não é que o sistema nos sufoque mas que nos destruamos inconscientemente, pois a República é apenas parte de nós, uma simples nota no nosso álbum de criações falhadas; no entanto, nós somos o seu todo, pelo que se um dia a deixarmos cair, “acidentalmente”, em desuso, também seremos arrastados nesse leito de destruição. Até lá, aguardamos por novos planos de reforma, propostas estas que não surgem há cerca de 26 séculos.
José Rui 10ºA